Detalhes

Quando olhamos um passarinho empalhado, parece-nos faltar alguma coisa, como se o normal não fosse ele ser daquele jeito; realmente não é. Falta-lhe o canto, o movimento, a delicadeza que só surge quando demonstra vida. Curiosamente nunca faríamos esta análise se o víssemos em seu habitat natural, voando e cantando todo contente.

Algumas coisas nos passam despercebidas, porque nos acostumamos a olhar o quadro inteiro, a obra completa, sem nos atermos às características individuais que lhe compõem. Aos que já tiveram a curiosidade de parar na rua e observar alguém pintando um quadro, um azulejo, possivelmente ficou a admiração de que um amontoado seqüêncial e aleatório de traços possa ter formado uma paisagem tão bela!

Os detalhes são pontos isolados que formam o conjunto. Sozinhos talvez não tenham tanta importância mas, assim como o passarinho sem canto, experimente fazer o homem sem sentimento. Cria-se, assim, seres incompletos, que passam o tempo destinado a criar fazendo coisas aleatórias e sem sentido, como se tentassem desesperadamente encontrar uma razão para si. O único jeito de os consertar é devolver-lhes o detalhe que lhes falta.

Interessante que em quase tudo conseguimos arrumar pontos incompletos: desenhos, quadros, uma casa, e mesmo coisas complexas, como um prédio inteiro ou um automóvel. Alguns detalhes, entretanto, fogem ao nosso controle, mas ao mesmo tempo dependem apenas de nós. A vida do nosso amigo pássaro ainda teria a beleza dos seus sons, caso alguém não o tivesse imobilizado como um adorno sem expressão. Os homens sem sentimentos podem ser consertados, mas o carpinteiro responsável por estas modificações mora no interior.

Não, não está lá naquela cidadezinha pequenina com poucos habitantes; não é este interior. Detalhes que nos faltam são completados por nós mesmos. O sorriso, a lágrima, o brilho nos olhos e a alegria de viver; tudo isto nos pertence, mesmo que não tenhamos à mão. Abrindo-nos ao que nos cerca, preocupados não apenas em ver o todo, mas as partes, conseguimos nos lapidar e gerar as características que alguns acham impossível termos.

Sensibilidade é algo que muitos reservam aos artistas. Mas o que é então a emoção que sentimos quando nos bate o vento no rosto, sentados olhando o que nos circunda, quando nos permitimos sentir? Somos tão complexos que os traços que nos compõem, para serem individualizados e consertados, requerem tempo. Não se pode esperar, assim, que consigamos nos permitir determinadas melhorias de uma hora para a outra, à exemplo de um pianista que não nasce com o dom para tocar e precisa de tempo para se refinar.

Detalhes, sim, porque a beleza oculta das coisas que nos parecem mais simples, mora neles. Sorrisos, lágrimas, pedaços de uma obra de arte em constante construção e elaboração, cujos artistas são seres isolados que não produzem sozinhos, cuja inspiração depende de uma aplicação constante das maravilhas que egoisticamente guardamos para nós mesmos. Detalhes, porque pássaros que nasceram para cantar, precisam colorir o mundo com suas melodias, ou perdem sua função natural.

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